terça-feira, 12 de julho de 2011

VIVENDO NO PASSADO





Preso no Passado
A madrugada se faz em altas horas, acordo sobressaltado com meus próprios pensamentos que se tornam mais audíveis do que os ruídos da noite. Levanto-me e caminho pela casa e faço uso de meu último cigarro e lentamente assim como a fumaça que dele é liberada vou me abandonando em minha poltrona preferida já desgastada pelo tempo.
As pessoas chamam-me de Ricardo, pois este é o nome pelo qual fui concebido por minha mãe em seu leito de morte, sim, no momento em que deu-me a vida, Deus retirou a dela e fui desta forma afastado de sua presença e de seus cuidados que ela nutriu por mim ao longo de toda a gestação que amorosamente zelava por minha chegada.
Traumaticamente cheguei ao mundo sem conhecer o amor de uma mãe, o carinho que ela dispensa a seu filho, a proteção exagerada, os mimos que toda a criança anseia em receber de sua mãe me foram suprimidos o direito de conhecer durante meu crescimento.
O que de minha mãe sei, é o que me foi contado por minha avó materna que acabou me criando desde o meu primeiro suspiro ou choro nesta terra de dores e carências. Sei que minha mãe era uma mulher de nobres sentimentos, devota de nossa Senhora, educada em colégio de freiras permanecendo até os seus 16 anos em regime interno de ensino, o que lhe garantiu princípios católicos e morais de extrema nobreza para com o semelhante.
A única foto que tenho de minha mãe já amarelada pelo tempo guarda-a em minha carteira e sempre antes de dormir a retiro e coloco ao lado de minha cama como que a procurar na presença que a foto me inspira ter a companhia daquela que a vida roubou-me tão precocemente.
Minha avó cuidou de mim ao seu jeito e nas condições que podia, pois meu pai desiludido com a morte de minha mãe e me culpando, saiu pelo mundo e nunca mais foi visto.
Pouco carinho recebi, muitas vezes preterido pelos demais netos que eram acompanhados de suas mães ficava eu abandonado em um canto da sala como se não estivesse ali, olhando, assistindo ao carinho que meus primos recebiam. Seus brinquedos, suas roupas novas, seus calçados eram sempre primeiro usados e depois quando já não lhes coubesse mais eram repassados a mim, como em realidade praticamente tudo o que eu possuía era desta maneira obtido.
Esta foi a minha vida até os meus 17 anos, quando decidi fugir de casa e ir procurar a vida que eu imaginava ter sido roubada de mim e tentar em outros horizontes que não aqueles nos quais eu me mantive dependente até aquela data, resolvi então criar uma vida que fosse minha e não mais o que sobrava da vida dos outros.
Sem dinheiro e com minha baixa estima me dominando completamente, fugi da casa que me abrigou por toda a minha vida até aquele momento, confesso que ainda quando me afastava dela, parei e olhei para trás para ter a certeza de que nunca me arrependeria de minha decisão, fechei os olhos e senti a emoção tomar conta de meu coração junto ao medo do desconhecido que sabia que iria enfrentar sozinho em terras estranhas, com pessoas que nunca as tinha visto anteriormente, mas dei o primeiro passo e logo em seguida o segundo e continuei a caminhar já sem olhar mais para o que deixava as minhas costas.
Foram dias de muita dificuldade, sem conhecer a vida fora dos limites da casa de minha avó fui descobrindo o quanto às pessoas podem ser más, o quanto o ser humano pode ser humilhado pelo seu semelhante. Nestes tempos vive de favores, de esmolas e em muitas vezes me peguei colhendo as sobras de alimentos que encontrava nos cestos de lixo, foram meses, anos de extrema dor, sofrimentos e humilhações, colhia naqueles tempos o despreparo para a vida que eu decidi enfrentar. Quanto mais o tempo passava, mais eu me sentia rejeitado pela vida, tinha a sensação de que a única coisa que me esperava la na frente era a minha morte e este era o caminho que eu teria que percorrer até encontrar o meu fim.
Neste meu percurso já delineado e aceito como definitivo por mim, recebi um sopro de sorte da vida, quando em uma das tantas vezes em que vasculhava os cestos de lixo atrás de algo para comer ou poder vende,r aproximou-se de mim um negro nos seus setenta anos já bem definidos pelo tempo e implacavelmente incorporados em seu físico já debilitado pela vida que havia se imposto as escolhas dele. Sensibilizado pela cena que eu proporcionava a ele se aproximou de mim e me ofereceu abrigo e alimento em sua casa por uma noite, surpreso e imensamente agradecido, pois naquele dia não tinha ainda me alimentado e já se aproximava das 22 horas, tratei de aceitar antes que ele se arrependesse. Caminhamos por dez minutos e chegamos a uma casa simples, pequena, mas extremamente acolhedora, convidou-me a entrar e me ofereceu roupas para serem trocadas após o banho. Já nem me lembrava mais quando tinha sido a última vez que havia tomado banho com água quente, acabava sempre me banhando em altas horas da noite em praças desertas onde não corria o risco de ser surpreendido, mas sempre com o ônus de infligir a meu corpo uma água gelada que parecia cortar a pele. Minhas roupas cheiravam tão mal que ele as colocou em um saco e jogou ao lixo, de barba feita e cabelos cortados quando me olhei no espelho chorei pela primeira vez depois de ter saído da casa de minha avó, um choro abafado e tímido, não me lembrava mais como eram as minhas feições sem a barba conquistada pelos anos de descuidos com minha aparência e a me ver barbeado não me contive e senti um misto de piedade e extrema carência.
Refeito de meu surpreendente espanto com minha figura, me junto àquela alma que me acolheu de maneira tão fraterna e expressando extremo constrangimento de olhos baixos indago por seu nome, ele em silêncio, lentamente se aproxima de mim e me da um afetuoso abraço que me desconcerta totalmente, pois há muito tempo não era tocado em meu corpo e muito menos ainda de maneira tão carinhosa e humana, pela segunda vez naquela noite não consegui segurar minhas lágrimas que agora em um choro copioso e em soluços deixava toda a minha desesperança e dor serem expulsas naquele momento das minhas entranhas e trazer-me a liberdade tão sufocada ao longo dos últimos anos de minha vida.
Quanto mais eu chorava, mais carinho recebia, meu coração parecia aos poucos acalmar-se e sentia-o mais leve, até que consegui me controlar, neste momento, este homem já de cabelos brancos disse-me seu nome em uma voz serena e tranquila. Armando, é o meu nome disse ele, olhando-me diretamente nos olhos, convidou-me a sentar a mesa e tomarmos uma sopa que ele havia preparado, uma sopa de legumes, macarrão e coxas de frango, posso dizer que devorei por três vezes de maneira havida aquela refeição que me fora oferecida. Ajudei-o na limpeza da mesa e da louça que usamos e fomos nos sentar na sala onde passei a lhe contar minha historia de vida.
Pacientemente Armando ouviu atentamente a tudo sem expressar qualquer reação, quando conclui minha explanação ele parou e me olhou profundamente me dizendo que eu era no agora o que ele fora no passado, e que se ele tinha uma casa que o abriga e lhe concede alguma comodidade, ele a deve a uma senhora que no passado também se solidarizou com as dificuldades que enfrentava em seu momento de vida, dessa forma, dizia ele o quanto entendia tudo o que eu havia passado até aquele momento.
Fiquei espantado com o relato dele, pois jamais naqueles breves momentos poderia ter imaginado que ele tinha tido uma experiência de vida tão dolorosa quanto a minha.
Devido ao adiantado da hora ele se apressou em apanhar cobertores com os quais eu pudesse me cobrir durante a noite e logo a seguir despediu-se de mim também indo buscar em seu quarto o repouso para o novo dia.
Naquela noite, depois de anos dormindo ao relento, debaixo de pontes ou raramente me abrigando em algum ambiente coberto decentemente, estava eu sentindo-me aconchegado em cobertas limpas e perfumadas, antes de fechar meus olhos para me entregar a um sono que certamente a muito não experimentava, retirei de minha carteira a foto de minha mãe e a coloquei junto a mesinha que se encontrava ao lado de minha cama e imediatamente cai em sono profundo.
Quando acordei no dia seguinte já passava do meio-dia, levantei-me assustado e sai até a sala onde encontrei Armando calmamente sentado olhando fixamente para um retrato na parede, afastou os olhos de onde os mantinha atentamente centrados e os dirigiu a mim e pediu para que eu sentasse junto a ele porque precisava conversar comigo.
Fiquei ligeiramente ansioso, temendo que me pedisse para que eu partisse imediatamente de sua casa, procurei não demonstrar minha preocupação e esperei ele me falar o que desejava.
Em sua extrema serenidade passou a relatar-me um sonho que tivera há alguns dias e que teria sido revelado por sua mãe sobre acontecimentos que estariam prestes a se materializar na vida dele, sempre me olhando nos olhos e de certa maneira mais intensamente me indagou, qual era o meu maior sonho, não hesitei um único segundo em lhe responder, pois minha vida toda tinha sido um constante peregrinar sem rumo certo, respondi-lhe que seria ter um lugar para morar e não precisar mais andar pelo mundo sem destino.
Armando seguiu-me observando sem falar nada, o que me deixou mais ansioso ainda do que eu já estava. Retomando sua fala disse-me ele, agora você não precisa mais caminhar sem rumo, você chegou onde tinha que chegar, espantado, lhe indaguei o que ele queria dizer com aquilo.
Calmamente ele retirou de seu bolso um papel que continha a escritura da casa e disse-me que iríamos sair e que ele passaria a escritura da casa para o meu nome, totalmente espantado e surpreso, disse-lhe que parasse de brincadeiras e que se era para eu ir embora já estaria dirigindo-me as ruas novamente, tomando-me pelo braço, pediu-me calma e passou a relatar o sonho que tivera com a mãe dele. Neste sonho lhe fora revelado por sua mãe, que quando ele encontrasse um homem que tivesse passado a mesma experiência de vida dele, neste momento teria se aproximado o instante de sua morte, e ele entendia que o momento teria chegado com a minha presença em sua casa, levantei-me assustado com o seu relato e querendo me dirigir a porta para sair apressadamente dali, fui seguro novamente pelo braço por Armando que procurou me acalmar pedindo que o ouvisse até o final.
Disse-me ele então que todas as vezes que sua mãe lhe aparecia em sonhos, o que lhe era relatado nestes sonhos acontecia quase que imediatamente e que não poderia perder tempo com maiores explicações e que eu devia confiar nele.
Entre reticente e relutante o acompanhei até o cartório de registro de imóveis onde a sua vontade se realizou. Incrédulo ainda com tudo que estava me acontecendo o acompanhei silenciosamente no retorno a sua casa, ou minha agora, já não sabia mais como me referir a casa.
Ao chegarmos ele me pediu um copo de suco, me dirigi até a cozinha para apanhar o suco e enquanto servia o copo dei-me por conta de que não havia lhe agradecido por ato tão inesperado e insólito. Retornando a sala onde se encontrava sentado, estendi o copo a ele e percebi que estava dormindo, me afastei retornando com o copo para a cozinha não desejando perturbá-lo, mas no meio do caminho um pensamento me gelou, lembrei-me do relato do sonho que tivera com sua mãe, retornei correndo junto a ele e o sacudi tentando acordá-lo, mas Armando encontrava-se já sem vida, mais uma vez em apenas 24 horas chorei copiosamente ajoelhado a seus pés, não compreendendo o que me acontecerá, pois pela segunda vez em que nascera para a vida a pessoa que a concedeu para mim parte de maneira brusca de minha presença, como poderia entender isto, mais do que entender, como poderia aceitar, sentindo-me culpado pela sua morte devido a minha presença, agora entendia o desolamento de meu pai. Minha mãe partiu tão logo nasci, agora Armando me concedeu nova oportunidade na vida e novamente a pessoa parte definitivamente de perto de mim, incrédulo fiquei por horas chorando até conseguir me mover e tomar as providências para o velório e funeral de Armando.
Não sabia eu, que Armando alem de me deixar a casa, também me deixará uma poupança que me garantiria o restante dos meus dias.
Hoje, aqui na mesma poltrona onde Armando morreu, me encontro desalinhado da vida, pensativo, reflexivo mas sem construir entendimentos que me levem a uma conclusão do por que em minha vida estes fatos se repetiram, porque em minha vida faço o meu caminho de maneira solitária e ainda, qual a razão de perdas tão significativas de pessoas que unicamente o que fizeram foi me darem a vida e depois de recebê-la os perco para a própria vida, meu cigarro acabara, meus pensamentos martirizam-me diuturnamente, volto para a cama e me entrego ao meu próprio esquecimento para não sofrer mais do que a vida mal vivida que vivi.
Entorpecido, me entrego às malhas do destino e caio em sono profundo sem querer mais acordar para não conviver com esta dura realidade da qual sou o protagonista principal, o vilão e o mocinho desta triste experiência de vida.


Autoria: Roberto Velasco
Preso no Passado – 18/04/11
Este conto esta protegido pela lei dos direitos autorais.

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